quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ação Civil Pública

A Constituição Federal em seu Art. 129, III, bem como o Art. 5º, I, da Lei Federal nº 7347/85, dão ao Ministério Público a função de promover o inquérito civil e a ação civil pública. A ação civil pública é uma ação que visa promover o controle da população, por meio do Ministério Público, constitucionalmente responsável pela defesa dos interesses sociais (Art. 127, CF), de atos dos poderes públicos. Como estabelece o Art. 6º da Lei nº 7347/85, qualquer pessoa pode provocar o Ministério Público para que esse proponha uma ação civil pública ao fazer com que esse adquira ciência de atos de improbidade administrativa que lesionam interesses supra-individuais (interesse difuso, coletivo ou individual tratado coletivamente).
Esses interesses transindividuais estão previstos no Art. 1º da, já citada, Lei nº 7347/85. Contudo, a Constituição Federal ao prever, em seu Art. 129, que cabe ao Ministério Público promover inquérito policia e ação civil pública para “proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” abrange todas as hipóteses de interesse geral, mesmo aqueles que não foram previsto no Art. 1º da Lei 7347/85, eliminando assim qualquer incompletude dessa quando define quais são os interesses difusos e coletivos.
No que tange as sanções, além do Art. 37, §4º da Constituição Federal, aplica-se o previsto pela Lei Federal 8429/92, ironicamente assinada pelo então Presidente Fernando Collor.
Como escreve Alexandre de Moraes ação civil pública “constitui nada mais do que uma mera denominação das ações coletivas, às quais por igual tendem à defesa de interesses metaindivivuais”. (MORAES, DIREITO CONSTITUCIONAL, PÁG. 338) .

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Fichamento "O Estado de Exceção" de Giordio Agamben

O Estado de Exceção

• Falta uma teoria sobre o estado de exceção no direito público;
• Trata-se de um ponto de desequilíbrio entre o direito público e o direito privado;
• Fatores elencados para se decretar esse estado: períodos de crise política; guerras; insurreições e resistências. Em resumo, o oposto do estado normal;
• As medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal (...) terra de ninguém entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida;
• O estado de exceção não é um direito especial, mas a suspensão da própria ordem jurídica. Ou seja, o direito inclui em si o estado de exceção, por meio de sua própria suspensão;
• Uma das características essências do estado de exceção é a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário. Contudo embora o direito desapareça, o Estado continua a existir;
• Denominações: latim, estado de necessidade, status necessitatis (toda lei é ordenada a salvação comum dos homens, e só por isso tem força e razão de lei; à medida que, ao contrário, faltar a isso, perderá sua força de obrigação {dispensatio}, mais detalhes página 41); doutrina alemã – estado de necessidade; doutrina italiana e francesa – decretos de urgência e de estado de sítio; doutrina anglo-saxônica – martial Law e mergency powers;
• A expressão “plenos poderes” define uma das possíveis modalidades de ação do poder executivo durante o estado de sítio, a atribuição desse promulgar decretos com força-de-lei. A idéia deriva do direito canônico de plenitudo potestatis,
• Mesmo durante as Grandes Guerras, países que não possuíam um governo totalitário, os que se diziam democráticos, usaram a “ampliação dos poderes” para se “proteger”, mesmo os neutro, como a Suíça, decretaram medidas autoritárias contra indivíduos que tentassem perturbar sua posição de neutralidade;
• Benjamim escreve que embora um uso provisório e controlado dos plenos poderes seja teoricamente compatível com as constituições democráticas, “um exercício sistemático e regular do instituto leva necessariamente à liquidação da democracia”;
• A doutrina se divide entre os que percebem o estado de exceção como parte do ordenamento jurídico e os que o percebem como fenômeno político, extra-jurídico. Contudo, se o que é próprio do estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico, como poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Ou, se, ao contrário, o estado de exceção é apenas uma situação de fato, e enquanto tal, estranha ou contraditória a lei; como é possível o ordenamento jurídico ter uma lacuna justamente quanto a uma situação crucial? Na verdade a exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou a uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam;
• A necessidade critério absoluto do estado de exceção, ou seja da suspensão do ordenamento, é concebida por alguns, como Santi Romano, como fonte primária, originária da lei, pois “se não há lei, a necessidade faz a lei” Contudo não só a necessidade se reduz em última instância, a uma decisão, como também, aquilo sobre o que ela decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito;
• Em analogia ao princípio de que a lei pode ter lacunas, mas o direito não as admite, o estado de necessidade é então interpretado como uma lacuna no direito público, a qual o poder executivo é obrigado a remediar. Um princípio que diz respeito ao poder judiciário estende-se, assim, ao poder executivo

Definição de Totalitarismo Moderno

• Instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político;
• Desde então a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essências dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos;
• Ameaça à constitucionalidade: O deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição;
• O estado de exceção nessa perspectiva gera uma profunda indeterminação entre democracia e absolutismo;
• Rossiter: em tempos de crise, o governo constitucional deve ser alterado por meio de qualquer medida necessária para neutralizar o perigo e restaurar a situação normal. Essa alteração implica, inevitavelmente, um governo mais forte, ou seja, o governo terá mais poder e os cidadãos menos direitos. Rossiter elenca 11 critérios para distinguir a ditadura constitucional da inconstitucional, mas não deixa claro como se dá a passagem de uma para a outra. Além disso, os dois critérios fundamentais – absoluta necessidade e temporalidade – como o próprio autor sabia, não eram mais respeitados “na era atômica em que o mundo agora entra, é provável que o uso dos poderes de emergência constitucionais se torne regra e não exceção” ou “os instrumentos de governo descritos aqui como dispositivos temporários de crise tornaram-se em alguns países, e podem tornar-se em todos, instrumentos duradouros mesmo em tempos de paz”. Contudo, concluiu que “nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiadamente grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia;

Força-de-Lei

• O termo força-de-lei possui origem na tradição romana e medieval, tendo sentido geral de eficácia, de capacidade de obrigar. Mas é apenas na época moderna que ele começa a indicar o valor supremo dos atos expressos pelas assembléias representativas do povo;
• Entretanto, é determinante que, em sentido técnico, o termo força-de-lei se refira, tanto na doutrina moderna quanto na antiga, não é a lei, mas àqueles decretos – que têm justamente, como se diz, força-de-lei – que o poder executivo pode, em alguns casos – particularmente, no estado de exceção – promulgar. O conceito de “força-de-lei”, enquanto termo técnico do direito, define, pois, uma separação entre a vis obligandi ou a aplicabilidade da norma em sua essência formal, pela qual decretos, disposições e medidas, que não são formalmente leis, adquirem, entretanto, sua “força”;
• Por meio da força-de-lei, tenta-se inscrever no direito algo exterior a ele e que visa, paradoxalmente, suspende-lo;
• O estado de exceção separa, pois a norma de sua aplicação para tornar possível a aplicação. Introduz no direito uma zona de anomia para tornar possível a normatização efetiva do real;
• No estado de exceção, defini-se um estado de lei, no qual a norma que está vigor, mas não se aplica (carece da força) e simultaneamente um estado em que atos, que não têm valor de lei adquirem sua força;
Assim, o estado de exceção é um estado anômico onde o que está em jogo é uma força-de-lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita força-de-lei {lei aqui riscado com um X});
• Tal força de lei em que potencia e ato estão separados de modo radical, é certamente algo como um elemento místico, ou melhor, uma fictio por meio da qual o direito busca se atribuir sua própria anomia;
• O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que a pura força-da-lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a conseqüente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real;

Breve História do Estado de Exceção de Roma até USA

Roma

• Iustitium – interrupção, suspensão do direito. Todas as prescrições jurídicas são postas de lado. Nenhum cidadão romano, seja ele magistrado ou um simples particular, agora tem poderes ou deveres;
• Tumultus – tem afinidade com tumor, que significa inchaço, fermentação;
• Nissen: a única definição possível que permite compreender todos os casos atestados é a que vê no tumultus “a cesura através da qual, do ponto de vista do direito público, se realiza a possibilidade de medidas excepecionais”;
• Na perspectiva do estado de necessidade, Nissen pode então, interpor o senatus consultum ultimum,a declaração de tumultus e o iustitium como sistematicamente ligados. O consultum pressupõe o tumultus e o tumultus é a única causa do iustitium. Essas categorias não pertencem à esfera do direito penal, mas à do direito constitucional e designam “a cesura por meio da qual se decide constitucionalmente o caráter admissível de medidas excepcionais;

França

• A origem do estado de sítio data do decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia Constituinte Francesa. Criando assim o état de paix, autoridade militar e civil agem cada uma em sua respectiva esfera, état de guerre, a autoridade civil deve agir em consonância com a militar e o état de siége, todas as funções de que a autoridade civil é investida para a manutenção da ordem e da política passam para o comando militar, que as exerce sob sua exclusiva responsabilidade;
• O estado de exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição absolutista;
• Já a idéia de suspensão da Constituição é introduzida pela primeira vez na Constituição da 22 frimário do ano VIII
• Com o tempo, tanto o estado de sítio, quanto a suspensão da Constituição, convergem para um único fenômeno jurídico que chamamos de estado de exceção;
• Na França, antes da grande guerra na França, o estado de exceção não estava previsto na Constituição, mas sim em lei, contudo os franceses recorriam à legislação por de decretos e a idéia de etát de siége para sua aplicação;

Alemanha

• O estado de exceção desempenhou um papel certamente determinante na Alemanha. A República de Weimar, em sua a Constituição estabelecia no Art. 48 poderes para o presidente do Reich nas situações em que a segurança pública e a ordem estivessem ameaçadas (mais detalhes página 28). Infelizmente, esse artigo previa a suspensão dos direitos fundamentais nessas situações, e, como o legislativo nunca regulou os limites do presidente nesse estado, conforme prometeram no texto legal fazer, esse artigo legalizou de forma muito simples o golpe de estado;
• Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do Povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição de Weimer relativos às liberdades individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que to o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12 anos;
• Scmitt faz uma distinção entre “ditadura comissária” e “ditadura soberana”, distinção que se apresenta como oposição a idéia de Friedrich de “ditadura constitucional”, que se propõe a salvaguardar a ordem constitucional, e a “ditadura inconstitucional”, que leva à derrubada da ordem constitucional. Na Alemanha mão é possível definir com clareza exata a transição da primeira à segunda forma de ditadura;
• Sabe-se que os últimos anos da República de Weimar transcorreram inteiramente em regime de estado de exceção; menos evidente é a constatação de que, provavelmente Hitler não teria podido tomar o poder se o país não estivesse há quase três anos em regime de ditadura presidencial e se o Parlamente estivesse funcionando. (...) O fim da república de Weimar mostra que uma “democracia protegida” não é uma democracia e que o paradigma da ditadura constitucional funciona sobretudo como uma fase de transição que leva fatalmente à instauração de um regime totalitário,
• Embora a Constituição Alemã de 68 não mencionasse o estado de exceção, o mesmo foi reintroduzido como “estado de necessidade interna”, porém não com o intuito de salvaguardar a segurança da ordem pública, mas para a defesa da “constituição liberal-democrata”. A democracia protegida tornava-se, agora, regra.

Itália
• Na Itália, o estado de exceção não era previsto explicitamente;

Inglaterra

• O único dispositivo jurídico que, na Inglaterra, poderia ser comparado com o état de siége francês é conhecido pelo nome de martial Law. Trata-se Porém de um conceito vago, um termo infeliz para justificar por meio da common Law, os atos realizados por necessidade com o objetivo de defender a commonwealth em caso de guerra;
• Após a 1ª Guerra, o parlamente aprovou uma série de medidas de emergência, dentre elas a Defence of Realm Act (4 de agosto de 1914) ou o Emmergency Power Act (29 de outubro de 1920, que tinha um caráter muito mais econômico, devido as tenções sociais existentes na época). Mais detalhes, páginas 33 e 34.

USA

• 13 de novembro de 2001, o presidente dos USA promulga a indefinite detention e o processo perante as military commissions, aplicados aos não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividade terrorista;
• 26 de outubro de 2001, o Senado dos USA promulga o USA Patriot Act, que permite aos Attorney general manter preso o estrangeiro (alien) suspeito de atividades que ponham em perigo “a segurança nacional dos Estados Unidos”, sendo que em 7 dias ou o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação da lei sobre a imigração ou qualquer outro delito;
• A novidade da “ordem” do presidente Bush está em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo;
• Os talibãs capturados no Afegão, além de não gozarem do estatuto do prisioneiro de guerra de acordo com a convenção de Genebra, tampouco gozam daquele de acusado segundo as leis norte-americanas. Nem prisioneiros, nem acusados, apenas detainees, são objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada, não só no sentido temporal, mas também, quanto à sua prórpia natureza, por que totalmente fora da lei e do controle jurídico. Medida que só se compara com a situação dos judeus como Lager nazistas: juntamente com a cidadania, haviam perdido toda identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a identidade de judeus;
• Mais detalhes, página 34, 35 e 38;

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Breve Resenha Crítica sobre a obra “As Misérias do Processo Penal”, de Francesco Carnelutti

A obra de Carnelutti (1879-1965), “As Misérias do Processo Penal”, é uma referência fundamental para qualquer estudante de Direito, não só aos que se interessam pelas áreas do Direito Penal e do Direito Processual Penal, posto que por meio dessa seara penalista, somada a sua esperança no homem e os ensinamentos de Cristo, Carnelutti pretende mostrar a necessidade de resgatarmos a tão almejada e proclamada civilidade. Prevendo de antemão o que seria tema para historiadores do direito, como Manuel Hespanha e Paolo Grossi (autor que define o Absolutismo Jurídico) nos dias atuais:

(...) Tudo se pede e tudo se espera do Estado; ou seja, do direito, mas não porque o Estado e o direito sejam a mesma coisa, mas porque o direito é o único instrumento do qual, em última análise, o Estado pode se servir. Se é verdade que cada fase da civilização tem o seu ídolo, o ídolo da que atravessamos, hoje, é o direito. Nós nos tornamos adoradores do direito. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 83)

Carnelutti demonstra em sua obra que não há melhor experiência que a penal para exprimir o abscesso gerado por essa idolatria, vazando o que há de mais purulento no ordenamento jurídico, ou seja, a realidade processual penal.
Já em seu prefácio, Francesco Carnelutti mostra que o processo penal se tornou um novo circo, uma forma de fugirmos da nossa ressecada e amargurada vida cotidiana, como toda boa forma de entretenimento. Contudo o fazemos à custa do sofrimento alheio, quando a vida do outro assume um caráter trágico. A catarse da população é confirmada com a atitude cada vez mais invasiva da imprensa, que ocupa quase todas as suas manchetes com, como o autor coloca, crônicas dos delitos e dos processos. A população assiste ao espetáculo processual penal, como se fosse ao cinema, ou pior, como se estivesse no coliseu, assistindo os gladiadores se confrontarem até a morte, ou a execução de supostas bruxas, que durante a inquisição eram condenadas a forca ou a fogueira em praça pública.
O autor explica que é no processo penal onde se reflete o grau de civilidade de uma população. Lembra ele, que civilidade, nada mais é do que a capacidade dos homens de quererem-se bem e por isso viverem em paz, ou como Cristo proferiu “amai-vos uns aos outros, como eu os amei”. Contudo, no processo penal, os acusados são tratados como qualquer coisa que não humana, como se fossem homens de mentira, espantalhos, ou, quando se percebe que são homens, são tratados como homens de outro mundo, pois “eu não sou como este”. Há outra forma mais incivilizada de tratar o próximo?
Esquecemo-nos que todos temos em nós um pouco de luz e trevas. A luz só existe, por existir as trevas. Quando esse distanciamento com o encarcerado for rompido, quando alcançarmos a consciência de que, como coloca o autor, “eu sou como este”, tão somente aí, poderemos nos considerar civilizados.
A real função do advogado ao se colocar no último patamar do processo, abaixo do juiz e do Ministério Público, ao lado do acusado, estendendo-lhe a mão, sentindo sobre suas costas o peso de uma possível condenação, é encontrar essa chama que mesmo o mais sórdido dos homens possui, aflorá-la para que não se condene violência com mais violência, pois isso nada mais é do que uma ilusão de justiça. Essa visão do germe do bem, naqueles tidos simplesmente como maus, dependerá do quanto nosso intelecto está iluminado pelo amor. Como Cristo disse ao expulsar o demônio – não é como o mal que se pode vencer o mal – ou Virgílio “omnia vincit amor”, somente o amor é sempre vitorioso. Muito sabiamente escreve o referido autor – o direito penal, sim, é o direito da sombra; mas precisa atravessar a sombra para chegar á luz. A pena ao invés de apagar essa chama, deveria reavivá-la, como um hospital para espíritos.
Carnelutti defende que todos temos esse germe do bem aprisionado, uns com algemas mais fortes, outros com grilhões mais leves, mas nunca esse germe toma em um ser o seu espaço merecido por completo. Assim, para ele o delito nada mais é do que uma explosão de egoísmo, na sua raiz.
O encarcerado, como define o autor, seguindo os mandamentos de Cristo, não necessita de alimento, nem de roupas, casa ou medicamentos, o único remédio para esse é o amor. O advogado aqui fará esse papel, o de companheiro do encarcerado, ou como lembra o autor ao elucidar a origem do termo companheiro, o “cum pane”, aquele que divide o pão. Sobre o exercício da advocacia muito bem define o autor:

Deixemos claro: a experiência do advogado está sob o signo da humilhação. Ele veste, porém, a toga; ele colabora, entretanto, para a administração da justiça; mas o seu lugar é embaixo; não no alto. Ele divide com o acusado a necessidade de pedir e de ser julgado. Ele está sujeito ao juiz, como está sujeito o acusado.
Mas justamente por isto a advocacia é um exercício espiritual salutar. Pesa a obrigação de pedir, mas recompensa. Habituar-se a suplicar. O que é mais senão um pedir a súplica? A soberba é o verdadeiro obstáculo à suplicação; e a soberba é uma ilusão de poder. Não há nada melhor que advocacia para sanar tal ilusão de potência. O maior dos advogados sabe não poder nada frente ao menos dos juízes; entretanto, o menos dos juízes é aquele que humilha mais. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 29)

Em síntese o processo penal busca conhecer o homem, conhecer o homem nada mais é do que reconstruir a sua história. O advogado e o Ministério público fazem essa reconstrução, mas com verdades antagonicamente escandalosas. Contudo esse escândalo é fundamental para que o juiz como historiador de um micro cosmo consiga chegar ao que mais se apresenta como verdade, captando por meio dos sentidos aquilo que a fração humana consegue perceber. Como a percepção humana é limitada, caso as teses não usassem e abusassem das cores e sons, a percepção de verdade do juiz seria proporcionalmente limitada também. Para tanto cabe a análise dos fatos, que segundo Carnelutti é:

Um fato é um pedaço da história é a estrada que percorrem, do nascimento á morte, os homens e a humanidade. Um pedaço da estrada, portanto. Mas da estrada que se fez, não da estrada que se pode fazer. Saber se um fato aconteceu ou não quer dizer, portanto, voltar atrás. Este voltar atrás é aquilo que se chama fazer história. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 46)

Há também a crença de que é possível se prevenir delitos, e assim a balança passa do juiz para o legislador que. Esse peso, porém, faze-se não sobre o fato, como coloca o autor, mas sobre uma abstração, que se denomina tipo. Ou seja, o tipo não é um fato, mas um conceito, não uma realidade, mas sim uma previsão. Assim, o juiz, muitas vezes se acostuma a julgar somente pelo tipo abstrato, esquecendo que a humanidade não vive em um mundo abstrato, mas sim concreto. Com já dito anteriormente, troca-se no processo penal, homens por espantalhos.
Somente quando o autor é declarado inocente extingue-se o processo pela, caso contrário, como Carnelutti coloca é ilusória a idéia de fim do processo penal. Primeiro, caso o acusado seja absolvido por faltas provas, a suspeita sobre esse, por mais que goze de liberdade, nunca se extinguirá, será lembrado sempre como acusado. Quando esse seja condenado e encaminhado ao presídio, sua detenção, como cumprimento da condenação, é continuidade do processo. Por fim, na hipótese desse sobreviver a detenção, ao contrário do que falsamente acreditamos, o processo não se encerra, pois a punição continua. Afinal, o isolamento, faz com que esse homem não se localize entre as possíveis novas configurações sociais, que perca laços afetivos e seja excluído por todos, pois nem mesmo o Estado italiano da época de Carnelutti contratava um ex-detento, assim, como esse poderia exigir postura contrária da sociedade?
O ex-preso, dessa forma, chega a distorcida e monstruosa conclusão que a tão sonhada liberdade não é melhor do que a prisão, que de fato se encaixava melhor ao cárcere. A sociedade nos define pelo passado, mas esquece que para alguém se redefinir, dependerá do futuro. Mais uma vez sou obrigado a usar as palavras do próprio autor:

Um homem é, porém em si, a sua história. E sua história é composta não somente do seu passado, mas também do seu futuro. Eu não sou só aquilo que tenho sido, mas também aquilo que serei. O presente é a síntese do passado e do futuro. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 54)

Essa redefinição dependerá da caridade em cada um de nós, que frutifica da razão, embora seja um ato de coragem e insensatez. A caridade essencialmente como risco insensato, mas necessário a sociedade, como quando São Francisco beijou o leproso, sem se ater ao risco de se contaminar. Eis o risco da caridade. Pois, por mais bem administrado, não conseguirá o direito a solução de todos os problemas inerentes ao homem, no máximo conseguirá uma forma de respeito, mas esse respeito não é suficiente para superar todas as divisões que construímos. Temos que ser antes caridosos, antes compreensivos, antes amarmos o próximo, entendermos que todos somos passíveis de erros, e que o sistema deve curá-los por meio da amizade, não os animalizar por meio das jaulas, para aí sim nos considerarmos justos e civilizados.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Trabalho Paolo Grossi - Vídeo e Roteiro Apresentação




O direito como realidade distante do homem comum

O homem comum desconfia do direito, pois:

O direito parece algo muito diferente de justiça, confundindo-se unicamente com o dito pela lei;

O direito mostra-se para esse homem comum como lei autoritária, oriunda de classes “superiores” para controlar os cidadãos, desconsiderando toda efervescência social.

Esse homem comum não está errado. Afinal, aprendemos que são virtudes comuns da lei: Abstração geral (indiferença); Rigidez (insensibilidade); Autoridade (indiscutibilidade do seu conteúdo);

Assim a lei acaba se configurando como um complexo de garantias formais, oriundo de órgãos (parlamento) e muito distante da consciência comum do que é justo;

A lei não deixa de buscar a justiça, mas essa acaba se tornando um objeto exterior. O que fará com que o povo, muitas vezes, seja obrigado a respeitar leis injustas.

Há outros horizontes

O Historiador do direito, por meio de conexões e comparações, deve desmistificar o reducionismo criado no Período Moderno do direito como sendo unicamente lei escrita, deixar claro que tal fato não passa de uma escolha política próxima de nós, mas que há outras hipóteses de ordenamentos jurídicos, como o direito que vigorou durante a Idade Média.

Civilização Medial X Civilização Moderna

Continuidade cronológica entre ambas, contudo assinaladas por uma profunda descontinuidade, devido as diferenças nas soluções adotadas por conta de ideologias antropológicas totalmente distintas;

Ambas possuem ampla consideração pelo direito, tendo-o como pilar de suas sociedades;

Na Idade Média o direito flui como o sangue por todo o organismo medieval, com fim máximo na sociedade civil;

Na Idade Moderna o direito se transforma em um instrumento do poder político contingente.

Civilização Medial (1ª Grande Contribuição de Grossi)

Ao contrário do idéia vigente de que a idade média, seria a idade das trevas entre a idade clássica e moderna, o historiador há que se ater ao fato de que essa período se prolongou por um milênio, fixando profundas raízes, criando costumes e mentalidades, forjando uma consciência mais que adequada para a forma de ver o mundo vigente na época;

Durante a Idade Média houve uma ausência de um poder político onicompreensivo, ou seja, esse não pretendia controlar por completo o fenômeno social, não abrangendo assim o social que não interferisse na coisa pública. Assim o direto medieval em essência não é oriundo da vontade política contingente de determinado Príncipe, ou poder político, mas sim, primordialmente e radicalmente da realidade histórica das espirais sociais;

Período de formações sociais muito articuladas e rebuscadas, que se geram, integram-se e se estratificam constantemente;

A primeira conseqüência disso é que o social assume um caráter autônomo, sem obrigações vinculantes, abrindo-se assim a diversas possibilidades de se expressar dentro dos planos políticos, econômicos, estamentais, profissionais, religiosos e familiares;

Resumo: Antes o direito, depois o poder político (situação inversa a atual);

A segunda conseqüência, o direito não se empobrece como voz do poder;

O Direito gerido pelo poder se restringia ao que hoje temos como direito constitucional, administrativo e penal, enquanto o direito por excelência, a razão civil é regido pelo social, baseado nos costumes, com poucas interferências da autoridade do Príncipe, ou seja um direito que não está no projeto do Príncipe, que não é criado por esse, que não é sua marionete e nem instrumento para benefício próprio;

Esse direito também não era operado e nem criado por legisladores, mas sim por teorizadores, juízes, tabeliões ou mercadores, que pela prática cotidiana estavam imerso nesse. Assim há de fato uma autonomia do jurídico, mesmo que relativa. O direito está na natureza das coisas, cabendo aos sábios juristas a tarefa de decifrá-lo com prudência. O direito é concebido como interpretação de textos respeitáveis (romano e canônico), esses sábios devem ler os sinais dos tempos e construir um direito medieval, mesmo que para isso tenho que ir contra o dito por esses textos clássicos;

A terceira conseqüência é que o direito se torna assim a realidade que fundamenta por completo todo o edifício de civilização;

Deslocamento da importância do sujeito ao objeto. O cerne do direito não é “de quem esse emana”, mas sim “quem esse atinge”, no caso a sociedade;

A lei é a leitura da realidade.

O Direito e o Social

O social e o jurídico tendem a se fundir, e é impensável uma dimensão jurídica vista como mundo de formas puras ou de simples comandos separados por uma substância social (PAOLO GROSSI, MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE, PÁG 30)

Civilização Moderna

Ainda na Idade Média e com o advento da Idade Moderna, uma nova concepção de Príncipe se propaga, criando um novo vinculo entre esse e o direito. O Príncipe liberta-se de vinculações medievais, como a sobreposição e integração fontes (leis, costumes, opiniões doutrinais, sentenças, práxis, etc) por meio de novas concepções antropológicas e individualistas, que fornecem mecanismos para que esse se isole como justificativa absoluta para o direito, abolindo toda forma de pluralismo jurídico por uma forma monista;

O Príncipe percebe a essencialidade do direito para efetivação do projeto estatal, assim, toma para si a função de legislador, ao contrário da Idade Média, que concebia o Príncipe como juiz supremo, o justiceiro do povo;

Fruto disso é a sublimação da lei, a mística da lei. Enquanto o sentido do direito medieval residia na finalidade do bem comum e a razoabilidade, essa lei não encontra nenhum objetivo social que vá além da sua própria vontade. A mística da lei torna-se herança do absolutismo que a revolução acolhe, tornando-a cada vez rígida sobre um suposto manto democrático;

Resseca-se a relação entre direito e sociedade. O direito se contrai em um sistema politizado, em sentido estrito, formalista, autoritário, inflexível, resumindo-se a lei.

Mitologia Jurídica

Contudo em plena revolução a lei receberia o apoio da democracia, criando a paradoxal mitologia de que a lei seria oriunda da vontade geral. Mesmo hoje ninguém conseguiu comprovar que a lei é o reflexo perfeito da vontade do povo, e não somente dos detentores do poder político. Essa crença se faz no presente, mantida pelo poder político, por ser um meio eficiente de controle social e pelos poderes jurídicos prostituídos, acomodados com seus salários, desempenhando seu papel formal de sacerdócio do culto legislativo.

Absolutismo Jurídico (2ª Grande Contribuição de Grossi)

O absolutismo jurídico é fruto típico da era burguesa, do liberalismo econômico, suposta era de direitos (conquista liberais), que a grande maioria recusa-se a desmentir, deixando jogada à escuridão a história de muitos, que continuam tendo seus direitos negados. A revolução que tirou por primeiro a monarquia do poder, continuou não escutando a voz da maioria. As codificações dos séculos XVIII e XIX foram em verdade processos limitadores e não naturais, que como conseqüência negativa de uma concepção do direito, geraram o absolutismo jurídico. Assim o direito passou a ser a vontade do Estado, daquele que o administrava. Tornou-se cada vez mais formal e tecnicamente pomposo, enquanto, simultaneamente, erguia um muro cada vez maior que separava o direito da realidade material, fazendo da sociedade em geral destinatária de um direito de “faz de conta”, sustentado por uma ilusória democracia;

Grossi conceitua o absolutismo jurídico como: o desenraizamento do direito da complexa riqueza social, o seu empobrecimento, o seu ressecamento, por seguir unicamente um monismo repulsivo da expressão do poder estatal e dos que fazem parte dessa máquina, criando obstáculos gigantescos ao pluralismo e a pluriculturalismo, como se o mundo fosse dotado de uma só história, evitando qualquer influência que vá além dessa. É a valorização da regra, da norma, como tudo que segue determinado curso, como um padrão. Assim, tudo que não se encaixa nessa forma será sempre ilícito ou irrelevante ao direito;

Assim, pela ideologia burguesa o direito privado toma um caráter de “fundador do ordenamento”, adquirindo um valor constitucional. A propriedade e os contratos passam a ter valor máximo e inquestionável, até mesmo pelos doutores e juízes. Esses por sua vez deveriam ser controlados, justamente para garantir ao novo cidadão (burguês) a liberdade em relação a ordem política. Liberdade compartilhada sigilosamente entre burgueses e novo Estado;

Essa estatização do direito privado foi a garantia mais sólida do absolutismo jurídico, vinculando a voz do Estado diretamente com a voz da lei. Dessa forma, propagou-se o mito de que a lei é a norma superior. Taxando a vontade do Estado como única expressão possível da vontade geral, reduzindo o direito ao que seria a lei;

Um dos mecanismos amplamente usado para tanto foi o jusnaturalismo, com suas idéias de direito natural, quase como uma fonte mística, que em prática imobiliza todo ordenamento. Dessa forma criando uma das maiores antinomias da história do direito, pois se usou do jusnaturalismo para justificar o juspositivismo;

Como o absolutismo O Direito acaba colocado como sombra do Estado, eliminando toda sua pluralidade e o deformando numa simples ferramenta de controle social;

Propriedade (3ª Grande Contribuição de Grossi)

Desmistificação da propriedade moderna. A redução de seu entendimento como relação homem-bens gera um empobrecimento desse instituto. Há outras hipóteses étnicas e históricas, exemplo disso é a “propriedade coletiva”. A idéia de propriedade é uma mentalidade, por ser vinculada a visão do homem no mundo e por ser ligada aos interesses vitais de indivíduos e classes. O universo do pertencimento individualista ganhou força no decorrer da idade Moderna. Com Locke, temos a idéia de que a “propriedade externa” reflete a “propriedade interna”. Para o Direito Romano valia a idéia de propriedade, muito próxima do que temos, enquanto para a maior parte do direito medieval temos uma idéia de posse, contudo essas idéias se misturaram com decorrer dos tempos, até que hoje usamos um conceito proprietário que se diz romano, mas bebe da mentalidade medieval (aparência, uso, gozo, exercício). Prova dessa mistura é a criação dos glosadores de “domínio útil”, pois para a Idade Média não era possível conceber uma propriedade interiorizada, muito menos uma pobreza absoluta. Cabia ao juiz e ao tabelião medieval estabelecerem sobre realidades plurais e rudimentares, mas historicamente efetivas, a aplicação de conceitos, como o da propriedade. Nesse momento a dominia à utilitas rei. O titular da relação servil, respeitadas as suas mais diversas formas, tinha o domínio sobre o ius da coisa, não sobre sua essência. Assim no medieval (primeiro e segundo período) a propriedade se forma sobre a coisa, enquanto que na nova idade, essa se forma sobre o sujeito, o individualismo possessivo. O que faz com que a propriedade moderna se torna uma máxima simplista do absolutismo.

Direito como Ordenamento e não como lei

Pensar o direito como mera norma, é o mesmo que tratá-lo como oriundo do nada, por isso há que se pensar no mesmo como ordenamento, para se restabelecer os vínculos com a sociedade. Não cabe confundir essa idéia com um discurso anarquista, ou falta de formalismo, mas sim conceber um sistema que respeite a pluralidade do ordenamento jurídico, que não ignora a realidade, uma mediação entre a sociedade e a autoridade, mas sem o caráter coercitivo e formalista negativo. A autoridade ao ler a realidade social, move-se de baixo para cima;

Ordem pressupõe rigor, rigor que analise constantemente todas as transformações do meio social. Cabe tornar rigoroso o mundo complexo e rico dos fatos. Significa respeitar à diversidade do real, opondo-se a generalizações pobres e inflexíveis. Destacar a “dimensão hermenêutica” como elemento interno, essencial, da positividade da norma é um dos principais objetivos desse foco ordenamentista;

Conceito de Ordenamento: ordenar é compor a unidade complexa e plural, fazendo com que as diversidades possam se tornar força daquela unidade sem se aniquilarem.