O direito como realidade distante do homem comum
O homem comum desconfia do direito, pois:
O direito parece algo muito diferente de justiça, confundindo-se unicamente com o dito pela lei;
O direito mostra-se para esse homem comum como lei autoritária, oriunda de classes “superiores” para controlar os cidadãos, desconsiderando toda efervescência social.
Esse homem comum não está errado. Afinal, aprendemos que são virtudes comuns da lei: Abstração geral (indiferença); Rigidez (insensibilidade); Autoridade (indiscutibilidade do seu conteúdo);
Assim a lei acaba se configurando como um complexo de garantias formais, oriundo de órgãos (parlamento) e muito distante da consciência comum do que é justo;
A lei não deixa de buscar a justiça, mas essa acaba se tornando um objeto exterior. O que fará com que o povo, muitas vezes, seja obrigado a respeitar leis injustas.
Há outros horizontes
O Historiador do direito, por meio de conexões e comparações, deve desmistificar o reducionismo criado no Período Moderno do direito como sendo unicamente lei escrita, deixar claro que tal fato não passa de uma escolha política próxima de nós, mas que há outras hipóteses de ordenamentos jurídicos, como o direito que vigorou durante a Idade Média.
Civilização Medial X Civilização Moderna
Continuidade cronológica entre ambas, contudo assinaladas por uma profunda descontinuidade, devido as diferenças nas soluções adotadas por conta de ideologias antropológicas totalmente distintas;
Ambas possuem ampla consideração pelo direito, tendo-o como pilar de suas sociedades;
Na Idade Média o direito flui como o sangue por todo o organismo medieval, com fim máximo na sociedade civil;
Na Idade Moderna o direito se transforma em um instrumento do poder político contingente.
Civilização Medial (1ª Grande Contribuição de Grossi)
Ao contrário do idéia vigente de que a idade média, seria a idade das trevas entre a idade clássica e moderna, o historiador há que se ater ao fato de que essa período se prolongou por um milênio, fixando profundas raízes, criando costumes e mentalidades, forjando uma consciência mais que adequada para a forma de ver o mundo vigente na época;
Durante a Idade Média houve uma ausência de um poder político onicompreensivo, ou seja, esse não pretendia controlar por completo o fenômeno social, não abrangendo assim o social que não interferisse na coisa pública. Assim o direto medieval em essência não é oriundo da vontade política contingente de determinado Príncipe, ou poder político, mas sim, primordialmente e radicalmente da realidade histórica das espirais sociais;
Período de formações sociais muito articuladas e rebuscadas, que se geram, integram-se e se estratificam constantemente;
A primeira conseqüência disso é que o social assume um caráter autônomo, sem obrigações vinculantes, abrindo-se assim a diversas possibilidades de se expressar dentro dos planos políticos, econômicos, estamentais, profissionais, religiosos e familiares;
Resumo: Antes o direito, depois o poder político (situação inversa a atual);
A segunda conseqüência, o direito não se empobrece como voz do poder;
O Direito gerido pelo poder se restringia ao que hoje temos como direito constitucional, administrativo e penal, enquanto o direito por excelência, a razão civil é regido pelo social, baseado nos costumes, com poucas interferências da autoridade do Príncipe, ou seja um direito que não está no projeto do Príncipe, que não é criado por esse, que não é sua marionete e nem instrumento para benefício próprio;
Esse direito também não era operado e nem criado por legisladores, mas sim por teorizadores, juízes, tabeliões ou mercadores, que pela prática cotidiana estavam imerso nesse. Assim há de fato uma autonomia do jurídico, mesmo que relativa. O direito está na natureza das coisas, cabendo aos sábios juristas a tarefa de decifrá-lo com prudência. O direito é concebido como interpretação de textos respeitáveis (romano e canônico), esses sábios devem ler os sinais dos tempos e construir um direito medieval, mesmo que para isso tenho que ir contra o dito por esses textos clássicos;
A terceira conseqüência é que o direito se torna assim a realidade que fundamenta por completo todo o edifício de civilização;
Deslocamento da importância do sujeito ao objeto. O cerne do direito não é “de quem esse emana”, mas sim “quem esse atinge”, no caso a sociedade;
A lei é a leitura da realidade.
O Direito e o Social
O social e o jurídico tendem a se fundir, e é impensável uma dimensão jurídica vista como mundo de formas puras ou de simples comandos separados por uma substância social (PAOLO GROSSI, MITOLOGIAS JURÍDICAS DA MODERNIDADE, PÁG 30)
Civilização Moderna
Ainda na Idade Média e com o advento da Idade Moderna, uma nova concepção de Príncipe se propaga, criando um novo vinculo entre esse e o direito. O Príncipe liberta-se de vinculações medievais, como a sobreposição e integração fontes (leis, costumes, opiniões doutrinais, sentenças, práxis, etc) por meio de novas concepções antropológicas e individualistas, que fornecem mecanismos para que esse se isole como justificativa absoluta para o direito, abolindo toda forma de pluralismo jurídico por uma forma monista;
O Príncipe percebe a essencialidade do direito para efetivação do projeto estatal, assim, toma para si a função de legislador, ao contrário da Idade Média, que concebia o Príncipe como juiz supremo, o justiceiro do povo;
Fruto disso é a sublimação da lei, a mística da lei. Enquanto o sentido do direito medieval residia na finalidade do bem comum e a razoabilidade, essa lei não encontra nenhum objetivo social que vá além da sua própria vontade. A mística da lei torna-se herança do absolutismo que a revolução acolhe, tornando-a cada vez rígida sobre um suposto manto democrático;
Resseca-se a relação entre direito e sociedade. O direito se contrai em um sistema politizado, em sentido estrito, formalista, autoritário, inflexível, resumindo-se a lei.
Mitologia Jurídica
Contudo em plena revolução a lei receberia o apoio da democracia, criando a paradoxal mitologia de que a lei seria oriunda da vontade geral. Mesmo hoje ninguém conseguiu comprovar que a lei é o reflexo perfeito da vontade do povo, e não somente dos detentores do poder político. Essa crença se faz no presente, mantida pelo poder político, por ser um meio eficiente de controle social e pelos poderes jurídicos prostituídos, acomodados com seus salários, desempenhando seu papel formal de sacerdócio do culto legislativo.
Absolutismo Jurídico (2ª Grande Contribuição de Grossi)
O absolutismo jurídico é fruto típico da era burguesa, do liberalismo econômico, suposta era de direitos (conquista liberais), que a grande maioria recusa-se a desmentir, deixando jogada à escuridão a história de muitos, que continuam tendo seus direitos negados. A revolução que tirou por primeiro a monarquia do poder, continuou não escutando a voz da maioria. As codificações dos séculos XVIII e XIX foram em verdade processos limitadores e não naturais, que como conseqüência negativa de uma concepção do direito, geraram o absolutismo jurídico. Assim o direito passou a ser a vontade do Estado, daquele que o administrava. Tornou-se cada vez mais formal e tecnicamente pomposo, enquanto, simultaneamente, erguia um muro cada vez maior que separava o direito da realidade material, fazendo da sociedade em geral destinatária de um direito de “faz de conta”, sustentado por uma ilusória democracia;
Grossi conceitua o absolutismo jurídico como: o desenraizamento do direito da complexa riqueza social, o seu empobrecimento, o seu ressecamento, por seguir unicamente um monismo repulsivo da expressão do poder estatal e dos que fazem parte dessa máquina, criando obstáculos gigantescos ao pluralismo e a pluriculturalismo, como se o mundo fosse dotado de uma só história, evitando qualquer influência que vá além dessa. É a valorização da regra, da norma, como tudo que segue determinado curso, como um padrão. Assim, tudo que não se encaixa nessa forma será sempre ilícito ou irrelevante ao direito;
Assim, pela ideologia burguesa o direito privado toma um caráter de “fundador do ordenamento”, adquirindo um valor constitucional. A propriedade e os contratos passam a ter valor máximo e inquestionável, até mesmo pelos doutores e juízes. Esses por sua vez deveriam ser controlados, justamente para garantir ao novo cidadão (burguês) a liberdade em relação a ordem política. Liberdade compartilhada sigilosamente entre burgueses e novo Estado;
Essa estatização do direito privado foi a garantia mais sólida do absolutismo jurídico, vinculando a voz do Estado diretamente com a voz da lei. Dessa forma, propagou-se o mito de que a lei é a norma superior. Taxando a vontade do Estado como única expressão possível da vontade geral, reduzindo o direito ao que seria a lei;
Um dos mecanismos amplamente usado para tanto foi o jusnaturalismo, com suas idéias de direito natural, quase como uma fonte mística, que em prática imobiliza todo ordenamento. Dessa forma criando uma das maiores antinomias da história do direito, pois se usou do jusnaturalismo para justificar o juspositivismo;
Como o absolutismo O Direito acaba colocado como sombra do Estado, eliminando toda sua pluralidade e o deformando numa simples ferramenta de controle social;
Propriedade (3ª Grande Contribuição de Grossi)
Desmistificação da propriedade moderna. A redução de seu entendimento como relação homem-bens gera um empobrecimento desse instituto. Há outras hipóteses étnicas e históricas, exemplo disso é a “propriedade coletiva”. A idéia de propriedade é uma mentalidade, por ser vinculada a visão do homem no mundo e por ser ligada aos interesses vitais de indivíduos e classes. O universo do pertencimento individualista ganhou força no decorrer da idade Moderna. Com Locke, temos a idéia de que a “propriedade externa” reflete a “propriedade interna”. Para o Direito Romano valia a idéia de propriedade, muito próxima do que temos, enquanto para a maior parte do direito medieval temos uma idéia de posse, contudo essas idéias se misturaram com decorrer dos tempos, até que hoje usamos um conceito proprietário que se diz romano, mas bebe da mentalidade medieval (aparência, uso, gozo, exercício). Prova dessa mistura é a criação dos glosadores de “domínio útil”, pois para a Idade Média não era possível conceber uma propriedade interiorizada, muito menos uma pobreza absoluta. Cabia ao juiz e ao tabelião medieval estabelecerem sobre realidades plurais e rudimentares, mas historicamente efetivas, a aplicação de conceitos, como o da propriedade. Nesse momento a dominia à utilitas rei. O titular da relação servil, respeitadas as suas mais diversas formas, tinha o domínio sobre o ius da coisa, não sobre sua essência. Assim no medieval (primeiro e segundo período) a propriedade se forma sobre a coisa, enquanto que na nova idade, essa se forma sobre o sujeito, o individualismo possessivo. O que faz com que a propriedade moderna se torna uma máxima simplista do absolutismo.
Direito como Ordenamento e não como lei
Pensar o direito como mera norma, é o mesmo que tratá-lo como oriundo do nada, por isso há que se pensar no mesmo como ordenamento, para se restabelecer os vínculos com a sociedade. Não cabe confundir essa idéia com um discurso anarquista, ou falta de formalismo, mas sim conceber um sistema que respeite a pluralidade do ordenamento jurídico, que não ignora a realidade, uma mediação entre a sociedade e a autoridade, mas sem o caráter coercitivo e formalista negativo. A autoridade ao ler a realidade social, move-se de baixo para cima;
Ordem pressupõe rigor, rigor que analise constantemente todas as transformações do meio social. Cabe tornar rigoroso o mundo complexo e rico dos fatos. Significa respeitar à diversidade do real, opondo-se a generalizações pobres e inflexíveis. Destacar a “dimensão hermenêutica” como elemento interno, essencial, da positividade da norma é um dos principais objetivos desse foco ordenamentista;
Conceito de Ordenamento: ordenar é compor a unidade complexa e plural, fazendo com que as diversidades possam se tornar força daquela unidade sem se aniquilarem.
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