A obra de Carnelutti (1879-1965), “As Misérias do Processo Penal”, é uma referência fundamental para qualquer estudante de Direito, não só aos que se interessam pelas áreas do Direito Penal e do Direito Processual Penal, posto que por meio dessa seara penalista, somada a sua esperança no homem e os ensinamentos de Cristo, Carnelutti pretende mostrar a necessidade de resgatarmos a tão almejada e proclamada civilidade. Prevendo de antemão o que seria tema para historiadores do direito, como Manuel Hespanha e Paolo Grossi (autor que define o Absolutismo Jurídico) nos dias atuais:
(...) Tudo se pede e tudo se espera do Estado; ou seja, do direito, mas não porque o Estado e o direito sejam a mesma coisa, mas porque o direito é o único instrumento do qual, em última análise, o Estado pode se servir. Se é verdade que cada fase da civilização tem o seu ídolo, o ídolo da que atravessamos, hoje, é o direito. Nós nos tornamos adoradores do direito. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 83)
Carnelutti demonstra em sua obra que não há melhor experiência que a penal para exprimir o abscesso gerado por essa idolatria, vazando o que há de mais purulento no ordenamento jurídico, ou seja, a realidade processual penal.
Já em seu prefácio, Francesco Carnelutti mostra que o processo penal se tornou um novo circo, uma forma de fugirmos da nossa ressecada e amargurada vida cotidiana, como toda boa forma de entretenimento. Contudo o fazemos à custa do sofrimento alheio, quando a vida do outro assume um caráter trágico. A catarse da população é confirmada com a atitude cada vez mais invasiva da imprensa, que ocupa quase todas as suas manchetes com, como o autor coloca, crônicas dos delitos e dos processos. A população assiste ao espetáculo processual penal, como se fosse ao cinema, ou pior, como se estivesse no coliseu, assistindo os gladiadores se confrontarem até a morte, ou a execução de supostas bruxas, que durante a inquisição eram condenadas a forca ou a fogueira em praça pública.
O autor explica que é no processo penal onde se reflete o grau de civilidade de uma população. Lembra ele, que civilidade, nada mais é do que a capacidade dos homens de quererem-se bem e por isso viverem em paz, ou como Cristo proferiu “amai-vos uns aos outros, como eu os amei”. Contudo, no processo penal, os acusados são tratados como qualquer coisa que não humana, como se fossem homens de mentira, espantalhos, ou, quando se percebe que são homens, são tratados como homens de outro mundo, pois “eu não sou como este”. Há outra forma mais incivilizada de tratar o próximo?
Esquecemo-nos que todos temos em nós um pouco de luz e trevas. A luz só existe, por existir as trevas. Quando esse distanciamento com o encarcerado for rompido, quando alcançarmos a consciência de que, como coloca o autor, “eu sou como este”, tão somente aí, poderemos nos considerar civilizados.
A real função do advogado ao se colocar no último patamar do processo, abaixo do juiz e do Ministério Público, ao lado do acusado, estendendo-lhe a mão, sentindo sobre suas costas o peso de uma possível condenação, é encontrar essa chama que mesmo o mais sórdido dos homens possui, aflorá-la para que não se condene violência com mais violência, pois isso nada mais é do que uma ilusão de justiça. Essa visão do germe do bem, naqueles tidos simplesmente como maus, dependerá do quanto nosso intelecto está iluminado pelo amor. Como Cristo disse ao expulsar o demônio – não é como o mal que se pode vencer o mal – ou Virgílio “omnia vincit amor”, somente o amor é sempre vitorioso. Muito sabiamente escreve o referido autor – o direito penal, sim, é o direito da sombra; mas precisa atravessar a sombra para chegar á luz. A pena ao invés de apagar essa chama, deveria reavivá-la, como um hospital para espíritos.
Carnelutti defende que todos temos esse germe do bem aprisionado, uns com algemas mais fortes, outros com grilhões mais leves, mas nunca esse germe toma em um ser o seu espaço merecido por completo. Assim, para ele o delito nada mais é do que uma explosão de egoísmo, na sua raiz.
O encarcerado, como define o autor, seguindo os mandamentos de Cristo, não necessita de alimento, nem de roupas, casa ou medicamentos, o único remédio para esse é o amor. O advogado aqui fará esse papel, o de companheiro do encarcerado, ou como lembra o autor ao elucidar a origem do termo companheiro, o “cum pane”, aquele que divide o pão. Sobre o exercício da advocacia muito bem define o autor:
Deixemos claro: a experiência do advogado está sob o signo da humilhação. Ele veste, porém, a toga; ele colabora, entretanto, para a administração da justiça; mas o seu lugar é embaixo; não no alto. Ele divide com o acusado a necessidade de pedir e de ser julgado. Ele está sujeito ao juiz, como está sujeito o acusado.
Mas justamente por isto a advocacia é um exercício espiritual salutar. Pesa a obrigação de pedir, mas recompensa. Habituar-se a suplicar. O que é mais senão um pedir a súplica? A soberba é o verdadeiro obstáculo à suplicação; e a soberba é uma ilusão de poder. Não há nada melhor que advocacia para sanar tal ilusão de potência. O maior dos advogados sabe não poder nada frente ao menos dos juízes; entretanto, o menos dos juízes é aquele que humilha mais. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 29)
Em síntese o processo penal busca conhecer o homem, conhecer o homem nada mais é do que reconstruir a sua história. O advogado e o Ministério público fazem essa reconstrução, mas com verdades antagonicamente escandalosas. Contudo esse escândalo é fundamental para que o juiz como historiador de um micro cosmo consiga chegar ao que mais se apresenta como verdade, captando por meio dos sentidos aquilo que a fração humana consegue perceber. Como a percepção humana é limitada, caso as teses não usassem e abusassem das cores e sons, a percepção de verdade do juiz seria proporcionalmente limitada também. Para tanto cabe a análise dos fatos, que segundo Carnelutti é:
Um fato é um pedaço da história é a estrada que percorrem, do nascimento á morte, os homens e a humanidade. Um pedaço da estrada, portanto. Mas da estrada que se fez, não da estrada que se pode fazer. Saber se um fato aconteceu ou não quer dizer, portanto, voltar atrás. Este voltar atrás é aquilo que se chama fazer história. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 46)
Há também a crença de que é possível se prevenir delitos, e assim a balança passa do juiz para o legislador que. Esse peso, porém, faze-se não sobre o fato, como coloca o autor, mas sobre uma abstração, que se denomina tipo. Ou seja, o tipo não é um fato, mas um conceito, não uma realidade, mas sim uma previsão. Assim, o juiz, muitas vezes se acostuma a julgar somente pelo tipo abstrato, esquecendo que a humanidade não vive em um mundo abstrato, mas sim concreto. Com já dito anteriormente, troca-se no processo penal, homens por espantalhos.
Somente quando o autor é declarado inocente extingue-se o processo pela, caso contrário, como Carnelutti coloca é ilusória a idéia de fim do processo penal. Primeiro, caso o acusado seja absolvido por faltas provas, a suspeita sobre esse, por mais que goze de liberdade, nunca se extinguirá, será lembrado sempre como acusado. Quando esse seja condenado e encaminhado ao presídio, sua detenção, como cumprimento da condenação, é continuidade do processo. Por fim, na hipótese desse sobreviver a detenção, ao contrário do que falsamente acreditamos, o processo não se encerra, pois a punição continua. Afinal, o isolamento, faz com que esse homem não se localize entre as possíveis novas configurações sociais, que perca laços afetivos e seja excluído por todos, pois nem mesmo o Estado italiano da época de Carnelutti contratava um ex-detento, assim, como esse poderia exigir postura contrária da sociedade?
O ex-preso, dessa forma, chega a distorcida e monstruosa conclusão que a tão sonhada liberdade não é melhor do que a prisão, que de fato se encaixava melhor ao cárcere. A sociedade nos define pelo passado, mas esquece que para alguém se redefinir, dependerá do futuro. Mais uma vez sou obrigado a usar as palavras do próprio autor:
Um homem é, porém em si, a sua história. E sua história é composta não somente do seu passado, mas também do seu futuro. Eu não sou só aquilo que tenho sido, mas também aquilo que serei. O presente é a síntese do passado e do futuro. (FRANCESCO CARNELUTTI, AS MISÉIRAS DO PROCESSO PENAL, PÁG 54)
Essa redefinição dependerá da caridade em cada um de nós, que frutifica da razão, embora seja um ato de coragem e insensatez. A caridade essencialmente como risco insensato, mas necessário a sociedade, como quando São Francisco beijou o leproso, sem se ater ao risco de se contaminar. Eis o risco da caridade. Pois, por mais bem administrado, não conseguirá o direito a solução de todos os problemas inerentes ao homem, no máximo conseguirá uma forma de respeito, mas esse respeito não é suficiente para superar todas as divisões que construímos. Temos que ser antes caridosos, antes compreensivos, antes amarmos o próximo, entendermos que todos somos passíveis de erros, e que o sistema deve curá-los por meio da amizade, não os animalizar por meio das jaulas, para aí sim nos considerarmos justos e civilizados.